Lucy Kellaway: "Eu era a clássica vítima da síndrome da impostora"

Por Redação em 19/09/2021 às 13:11:02

Ex-colunista do FT participa de festival literário onde fala sobre sua transição de carreira e os desafios para os profissionais 50+ Lucy Kellaway, editora contribuinte do FT e cofundadora da Now Teach, organização que ajuda profissionais experientes a se reciclarem como professores

Alamy/Fotoarena

A professora de matemática Lucy Kellaway ainda se lembra de todos comentários incrédulos que recebeu quando anunciou em 2016, em sua prestigiosa coluna no jornal britânico "Financial Times", que iria mudar de carreira dali a alguns meses. “Foi uma decisão absolutamente racional. Estranho foi como as pessoas acharam isso tão estranho”, diz. Aos 57 anos, depois de 32 anos dedicados ao jornalismo, ela sentia que não estava aprendendo nada de novo. A transição para a nova profissão veio acompanhada de mudanças pessoais e virou tema de seu quarto livro “Re-educated: How I changed my job, my home, my husband and my hair”, lançado em julho.

Lucy foi entrevistada pelo presidente da Universidade IE, Santiago Iñiguez, em uma aula magna que encerrou no último sábado o Hay Festival de Literatura e Artes, que aconteceu em Segóvia, na Espanha. Exibindo os cabelos brancos e novo corte, ela falou sobre o desafio para os profissionais que precisam repensar a carreira aos 50 anos e como ela conseguiu fazer essa transição profissional.

A carreira no FT começou cedo. Com 25 anos de idade, apareceu para trabalhar com um cardigan que ela mesma havia tricotado. Ela diz que se sentia totalmente inapropriada. “Eu era a clássica vítima da síndrome da impostora”, conta. “Era uma jovem mulher que tinha muito medo de ser inútil. Eu via meus colegas homens e achava injusto que eu me sentisse tão insegura e eles não”. Sensação que ela diz que a acompanhou em todos os anos em que trabalhou como jornalista. “Você não pode continuar morrendo de medo de ser inútil por 32 anos”, diz. “Mas a motivação da gente muda quando você envelhece. Quando eu comecei no jornalismo eu era o show, queria glamour, adorava ver meu nome e minha foto no jornal e as pessoas interessantes que eu conhecia”, lembra.

A vontade de deixar o trabalho como colunista - ela era uma das mais importantes e populares do FT -, surgiu dez anos antes de ela fazer efetivamente a transição de carreira. Pensou em dar aulas, inspirada em sua mãe que tinha sido professora a vida toda e em sua filha que também começava a trilhar o mesmo caminho. O gatilho para seguir com a ideia, aconteceu quando seu pai faleceu aos 90 anos e ela consultou um site para calcular a expectativa de vida e viu que aos 57 ainda teria muitos anos de trabalho pela frente. A sua expectativa de vida era 94.

Decidiu então montar uma ONG, a Now Teach, onde pudesse reunir profissionais maduros, na faixa dos 50 a 55 anos, super qualificados, que, como ela, estavam dispostos a abrir mão de status e altos salários para dar aulas para adolescentes e crianças em escolas do ensino público britânico. “Começamos com 45 profissionais, hoje temos 500”, explica. Exercer o novo ofício, segundo ela, não foi fácil. “Eu me achava relativamente competente como colunista, era muito confiante. Quando comecei a dar aulas, fiquei tão nervosa, cometia erros elementares na minhas explicações de matemática, tinha problemas para lidar com uma lousa inteligente”, conta. “A única coisa que te faz enfrentar tudo é que você genuinamente acredita que ensinar crianças têm algum valor”, explica.

Nem todos os executivos que quiseram seguir o seu exemplo se deram bem. Ela lembra de um, vindo de uma instituição financeira, graduado em física pela Universidade de Cambridge, que queria ensinar, mas que não gostava de crianças. “Para ele, não era uma escolha natural de carreira”, observa. A vantagem de iniciar uma carreira depois dos 50, para ela, é que “as barras não precisam estar tão altas”. “Quando você é mais velho pode fracassar, o jovem sente a necessidade de se provar, é mais inseguro, seu ego é frágil”.

Ela diz que as empresas ainda falam muito pouco sobre diversidade etária, mas que essa discussão deve crescer. “Em muitas companhias, a idade traz status, um salário maior e superioridade. Então, são grupos privilegiados. Como de repente eles se sentem em desvantagem?”, pergunta. “Eles se tornam caros e são dispensados. Não existem trilhas de carreira para esses profissionais, não se discute o suficiente.”

Até a publicidade, na sua opinião, ainda subestima o poder de compra dos mais seniores. “Geralmente os anúncios para os mais velhos trazem cruzeiros e fraldas geriátricas”, brinca. “Isso é completamente insano, quem são os consumidores com dinheiro? Espero ver muitos mais ativistas da questão etária surgindo e eu estarei lá com eles.”

Embora afirme que não acompanha mais assuntos relacionados à gestão, Lucy lamenta o possível fim da vida no escritório, que ficou ameaçada após a covid19 com a adoção do home office. “Eu sei que às vezes poder estar em uma reunião maçante e fazer o jantar ao mesmo tempo é uma vantagem, mas existe o perigo de perdermos algo maravilhoso, aquilo que realmente nos cria vínculos”, diz. A vida no escritório foi tema de seu primeiro livro e combustível para inúmeras colunas no FT. "Existe muito significado nas interações com colegas”, enfatiza. Um modelo híbrido que permita à pessoa trabalhar de casa pelo menos uma vez por semana, segundo ela, "parece fantástico”.

Lucy não gosta muito de eventos virtuais. “Prefiro estar aqui olhando para vocês”, disse à plateia. Nos últimos tempos de FT, ela lembra que os jornalistas foram intimados a usar o Twitter e que ela se recusou. “Vejo hoje meus colegas sendo engolidos. Não acho saudável que tudo seja medido, como se eles fossem adolescentes patéticos. Quantos likes você tem no seu post? O que estão dizendo? Quantas page views? Quanto tempo eles ficaram na página?”, critica. “Acho a internet obviamente maravilhosa, em vários aspectos, mas ficamos muito presos a comentários que podem ser bem maldosos. Existem 300 comentários legais que você vai ignorar para prestar atenção nos 20 que foram desagradáveis.”

Quando disparava suas farpas para o mundo corporativo como colunista, as mídias sociais ainda não tinham tanto poder e influência. “Sempre quis ser a mais controversa possível, mas estava em uma área segura que era a gestão”, diz. Como escritora, Lucy diz que agora precisa investir na autopromoção. “Quando meu livro saiu eu fiquei de olho no Twitter. E quando alguém tuitava algo legal, eu me vi retuitando”, diverte-se. “De repente, estava fazendo o que levemente desprezava." A reeducação de Lucy.

A inspiradora reeducação de Lucy Kellaway

Fonte: Valor Econômico

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