'Guardiões do Crivella' também atuam na internet; em live, mulher fala bem de hospital e depois admite que é assessora do prefeito

Por Redação em 01/09/2020 às 06:59:19

RJ2 mostrou esquema de contratados da Prefeitura do Rio, com escalas e comprovação de presença, para interromper o trabalho de repórteres na porta de hospitais municipais. Em live da TV Ilha, Daniela confirmou que era assessora de Marcelo Crivella, mas depois pediu para o trecho ser editado

Reprodução/ TV Globo

Em uma transmissão da TV Ilha, uma das participantes do grupo autointitulado como "Guardiões do Crivella", em que funcionários públicos combinam plantão na porta dos hospitais municipais do Rio para atrapalhar reportagens e impedir que a população fale e denuncie problemas na área da Saúde, confirma ser assessora do prefeito, mas depois pede que o trecho seja retirado da transmissão.

Durante uma live da TV Ilha sobre o atendimento no Hospital Evandro Freire, os apresentadores ouviam o relato do acompanhante de uma paciente. Daniela Rocha Pinto de Jesus também entrou na transmissão para dar um depoimento positivo sobre o atendimento.

"A gente está aqui para dar o suporte para a população. O Hospital Evandro Freire, eu acompanhei de perto, eu só tenho que elogiar este hospital, muito bom. Eu dei toda a atenção para ela, com todo o carinho. Eu expliquei que eu vivi esta situação com o meu pai, tive um câncer de mama, sei o que é estar doente", afirma Daniela.

Ela é interrompida pelo apresentador, que a questiona sobre a conexão com o prefeito e pergunta se ela trabalha como assessora do poder municipal.

"Você é assessora do prefeito Marcelo Crivella? Aqui na Ilha do Governador?", pergunta.

"Sim", ela confirma.

No dia seguinte, ela entrou em contato com a TV Ilha pedindo para que o trecho em que ela confirma que trabalha como assessora do prefeito seja retirado.

"Eu vou pedir uma gentileza para você. Ontem, quando, na live, você falou: você, 'Daniela, é assessora do prefeito...' Eu não tinha como falar não. Porque, primeiro, todo mundo me conhece. Eu estou lá no Facebook postando tudo, assessoria. Imagina, seria muito feio para mim falar que não, que eu ia fazer papel de mentirosa. Mas, assim, foi ruim você ter me perguntado isso. Então, queria ver com você se, nessa live, você tinha como cortar isso em algum momento", afirmou Daniela.

Daniela Rocha Pinto de Jesus tem um cargo especial no gabinete do prefeito Marcelo Crivella desde março de 2019, com um salário de R$ 5.206,66.

Após veiculação de reportagem sobre os 'Guardiões do Crivella', grupo do Whatsapp sofre debandada de participantes

Reprodução/ TV Globo

Debandada em grupo

Logo após a veiculação de reportagem do RJ2, o grupo no Whatsapp onde eram combinadas escalas e horários sofreu uma debandada.

Várias pessoas saíram do grupo. Marcos Paulo de Oliveira Luciano, o ML, que aparece nas conversas dando ordens, ainda alertou os participantes do grupo.

"Gente, não é para sair do grupo, nunca houve nada errado aqui", disse ML.

A organização tem escalas diárias, horários rígidos e ameaças de demissão.

Resumo

A reportagem mostrou que:

por grupos de Whatsapp, funcionários públicos são distribuídos por unidades de saúde municipais para fazerem uma espécie de plantão;

em duplas, eles tentam atrapalhar reportagens com denúncias sobre a situação da saúde pública e intimidar cidadãos para que não falem mal da prefeitura;

O RJ teve acesso ao conteúdo dos grupos e viu que, após serem escalados, eles postam selfies para dizer que chegaram às unidades;

um dos funcionários aparece em várias fotos ao lado de Crivella e tem salário de mais de R$ 10 mil;

quando conseguem atrapalhar reportagens, eles comemoram nos grupos;

a prefeitura não nega a criação dos grupos e diz que faz isso para 'melhor informar a população.

Entre os participantes de um dos grupos, um telefone chama a atenção. O número aparece registrado como sendo do próprio prefeito, Marcelo Crivella. O Jornal Nacional apurou que o prefeito já usou esse número. A equipe de reportagem ligou, mas ninguém atendeu.

"O prefeito, ele acompanha no grupo os relatórios e tem vezes que ele escreve lá: "Parabéns! Isso aí!"", contou à TV Globo um dos participantes dos grupos.

Funcionários da Prefeitura do Rio tentam impedir a imprensa de mostrar queixas de cidadãos

Funcionários mandam selfies para dizer que chegaram aos hospitais

Reprodução/TV Globo

As 'invasões'

Em uma entrevista ao vivo para o Bom Dia Rio em 20 de agosto, no Hospital Rocha Faria, dona Vânia cobrava uma transferência para a mãe que tem câncer, mas não conseguiu terminar a conversa com a repórter Nathália Castro porque dois homens começaram as agressões verbais e gritos de "Bolsonaro".

A repórter pediu desculpas para Vânia, encerrou a reportagem e as agressões dos dois homens continuaram, gerando uma confusão.

Dias depois, no Hospital Rocha Faria, o repórter Ben-Hur Corrêa falava da falta de equipamentos de raios-x e da situação do caixa da prefeitura, quando dois homens impediram a reportagem.

Em seguida, um dos homens botou o crachá e foi em direção ao interior do hospital.

Os ataques não acontecem por acaso. Ao contrário: são organizados e pelo poder público.

Os agressores são contratados da prefeitura do Rio. Recebem salários pagos pelo contribuinte para vigiar a porta de hospitais e clínicas, para constranger e ameaçar jornalistas e cidadãos que denunciam os problemas na saúde da capital fluminense.

Servidores conhecidos como 'guardiões do Crivella' atrapalham reportagens nos hospitais

Nesta segunda-feira (31), o repórter Paulo Renato Soares fazia uma entrevista na porta do Hospital Salgado Filho, no Méier. Ao primeiro sinal de que a gestão da saúde poderia ser criticada, o entrevistado foi interrompido (veja no vídeo acima).

Funcionário da prefeitura: "Fala isso não, meu querido".

Entrevistado: "Oi?"

Funcionário da prefeitura: "Fala isso não, cumpadre".

Entrevistado: "Como, perdi um dedo, não posso falar?"

Funcionário da prefeitura: "Fala isso não, meu irmão".

Entrevistado: "Não tô falando do hospital, não. Estou falando de Rocha Miranda".

Funcionário da prefeitura: "Você foi bem atendido, não foi?"

Repórter: "Ele [o entrevistado] não pode falar da saúde?"

Funcionário da prefeitura: "Não".

Repórter: "O senhor pode deixar ele falar da saúde?"

Funcionário da prefeitura: "Está tudo indo bem, meu querido"

O repórter, então, começa a confrontar o funcionário:

Repórter: "O senhor é o senhor José Robério Vicente".

Funcionário da prefeitura: "O hospital está tudo certinho, meu querido. O prefeito está trabalhando correto e bem."

Repórter: "Quem está trabalhando bem?"

Funcionário da prefeitura: "Com certeza, o prefeito está trabalhando bem. Na saúde. Que negócio é esse, rapaz?"

José Robério, um dos funcionários da prefeitura que invadiu reportagens

Reprodução/Globo

José Robério Vicente Adeliano foi admitido na prefeitura em novembro de 2018, em "cargo especial". O salário bruto é de R$ 3.229.

Ricardo Barbosa de Miranda foi contratado pela prefeitura em junho de 2018, como assistente 3 e salário de R$ 3.422.

Dupla posta foto na 'ronda' pelos hospitais

Reprodução/TV Globo

Ricardo Barbosa de Miranda foi contratado pela prefeitura em junho de 2018

Reprodução/TV Globo

Guardiões

Os dois fazem parte de um grupo que se apresenta em um aplicativo de mensagens como "Guardiões do Crivella". Para cumprir a tarefa de tentar calar a população e a imprensa, os guardiões têm até escala.

O RJ2 teve acesso às conversas desse e de outros dois grupos. Um identificado como Assessoria Especial GBP -- gabinete do prefeito -- e o outro, como Plantão.

É por esses grupos que os funcionários da prefeitura ficam sabendo pra onde vão – em duplas ou sozinhos – para cumprir o dia de trabalho e impedir que se mostrem as dificuldades na saúde.

Quando chegam nas unidades, ainda de madrugada, precisam registrar a presença. Na rotina, todos os dias têm que mandar selfies do lugar onde estão: "Hospital Souza Aguiar, cheguei cedo"; "Bom dia companheiros, mais um dia no Albert Schweitzer"; "Equipe Pedro 2º"; "Hospital Evandro Freire - Beto e Dani" foram algumas mensagens postadas.

Em uma foto aparecem Robério e Ricardo Barbosa, que a TV Globo encontrou no Salgado Filho, mostrando que estavam a postos.

Depois de bater essa espécie de ponto, os funcionários públicos monitoram e relatam tudo o que acontece na porta das unidades de saúde. Principalmente a chegada dos jornalistas.

Foi assim, na quinta-feira (27), quando a equipe da Globo esteve no Rocha Faria. Eles ficam sempre com o celular na mão, fazem vídeos dos jornalistas, estão sempre perto da reportagem e esperam o momento de agir.

Os escalados naquele dia eram:

Marcelo Dias Ferreira, desde setembro de 2018 na prefeitura com cargo especial e salário bruto de R$ 2.788.

Luiz Carlos Joaquim da Silva, o Dentinho, contratado em dezembro de 2019 com salário bruto de R$ 4.195, em cargo especial.

Marcelo Dias Ferreira tem cargo especial e salário bruto de R$ 2.788

Reprodução/TV Globo

Luiz Carlos tem cargo especial na prefeitura e recebe mais de R$ 4 mil

Reprodução/TV Globo

Luiz Carlos Joaquim da Silva, o Dentinho, ao lado de Crivella em foto

Reprodução/TV Globo

Dentinho tem várias fotos com Crivella nas redes sociais desde a campanha para a prefeitura. É ele também que impede a entrevista com dona Vânia (citada no inicio da reportagem ao cobrar uma transferência para a mãe com câncer).

Bronca após atraso

'ML' dá bronca porque equipe não conseguiu atrapalhar reportagem da Globo: 'muito triste'

Reprodução

Na quinta-feira (27), no entanto, os vigias estavam atrasados. Não viram o repórter Ben-Hur entrar ao vivo, ainda muito cedo, o que provocou irritação e cobrança nos grupos.

Alguém identificado apenas como ML manda a foto da reportagem e escreve: "A Globo está no Rocha. Cadê a equipe do Rocha? Mateus, liga pra equipe do Rocha".

Mateus responde: "Sim, senhor".

ML, de novo, questiona: "Quem está no Rocha?? Gente, muito triste, não derrubamos a matéria (...) Não pode haver falta, nem atraso. Falhamos no Rocha Faria. Inaceitável".

Depois da bronca, além dos dois escalados, chegou um reforço: outra dupla de agressores.

Eles atrapalharam a continuação da reportagem – e comemoraram:

"Eu acho que não é ao vivo. Acho que estão fazendo matéria pra mais tarde, mas tentaram entrar várias vezes e nós interrompemos por essas vezes todas aí", diz um deles, em um áudio enviado no grupo.

ML – que aparece no grupo – está sempre dando ordens. "Marquem durinho aí, hein. Não dá mole pra eles, não", diz em uma das mensagens.

ML é Marcos Paulo de Oliveira Luciano, o Marcos Luciano. Outro que divulga várias fotos com o prefeito.

Em 2018, Marcos Luciano ganhou uma moção de aplausos e louvor na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), a pedido da deputada Tia Ju, do Republicanos, o mesmo partido de Crivella.

O currículo de Marcos, apresentado na época, revela a proximidade dele com o prefeito. Trabalhou como missionário com Crivella na África e no Nordeste do Brasil, foi um dos coordenadores das campanhas eleitorais do bispo ao Senado e à prefeitura.

Desde 2017, Marcos Luciano é assessor especial do gabinete do prefeito. Em julho, o salário foi de R$ 10,5 mil.

"O sistema todo é chefiado pelo doutor Marco Luciano. Doutor Marco Luciano é um amigo do Crivella. É o chefão geral, tá? Não sei se ele é parente, se é da Igreja Universal, não sei, não, mas sei que ele é muito chegado. É uma pessoa de extrema confiança do prefeito Crivella."

A fala é de um dos contratados da prefeitura que fez parte do esquema para vigiar a porta dos hospitais. Ele diz que era intimidado pelos chefes.

"Todo tempo, ameaça é de demissão. Quando eles fazem reuniões com a equipe, ninguém pode entrar de celular e passam detectores de metal em cada funcionário e as reuniões são geralmente na prefeitura, e é muita ameaça."

'Missão' antiga, intensificada na pandemia

O homem conta ainda que a tática foi adotada no fim do ano passado e aumentou durante a pandemia.

"Nós temos essa missão lá já há mais de 8 meses. Antes, já estava funcionando, mas quando entrou a Covid em março, ficou todos os dias. Existe plantão nas unidades para poder cercear a imprensa", conta.

O que diz a prefeitura

Em nota, a Prefeitura do Rio diz que "reforçou o atendimento em unidades de saúde municipais no sentido de melhor informar à população e evitar riscos à saúde pública, como, por exemplo, quando uma parte da imprensa veiculou que um hospital (no caso, o Albert Schweitzer) estava fechado, mas a unidade estava aberta para atendimento a quem precisava. A Prefeitura destaca que uma falsa informação pode levar pessoas necessitadas a não buscarem o tratamento onde ele é oferecido, causando riscos à saúde".

Fonte: G1

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