Globo Esporte/G1
Preta, pobre, mulher. Elza Soares enfrentou o combo da desigualdade e dos preconceitos brasileiros, dona de um simbolismo e de uma história de vida vigorosos demais para que sua biografia a retrate como “a mulher de Garrincha”. No entanto, numa reflexão que projete a trajetória deste fenômeno da natureza para o ambiente esportivo, é possível dizer que Elza foi o bode expiatório sob medida para que o futebol manifestasse uma das faces mais cruéis e desavergonhadas do machismo nacional. Mais de meio século se passou e o jogo, assim como a sociedade, ainda não se livrou desta chaga.Elza não foi apenas condenada por uma espécie de tribunal onde, em geral, a mulher não tem direito a defesa. Sua definitiva união com Garrincha aconteceu enquanto todos os dedos estavam apontados em sua direção, afinal o país decretara que fora ela a responsável pelo fim do casamento de um ídolo nacional. O craque, quando conheceu Elza no Chile, durante a Copa do Mundo de 1962, era casado. Não foi Garrincha quem iniciou um relacionamento extraconjugal, foi a cantora quem destruiu uma família.Elza SoaresReprodução SporTVÉ um tanto estarrecedor, desalentador até, descobrir que mudamos tão pouco em tanto tempo. Elza seria, poucos anos depois, uma das primeiras vítimas de uma narrativa que, até hoje, cruza insistentemente o nosso caminho. No caso de Garrincha, foi o álcool, no caso de tantos outros jogadores, os prazeres da noite, as portas que a idolatria escancara, a mudança repentina de uma vida de privações para um status de herói nacional. Não é fácil administrar. Mais fácil é, de novo, culpar a mulher. E Elza Soares, com a força que talvez só ela sabia de onde vinha, enfrentou um país inteiro que a condenava como responsável pela decadência de um craque bicampeão do mundo. Enquanto, entre quatro paredes, ela era vítima de violência doméstica.O mesmo país que romantiza, glamouriza e exalta o jogador garanhão, que posa com uma coleção de parceiras exibidas como troféus, por vezes ainda tropeça na tentação de despejar nelas, e não nas escolhas de homens adultos, ainda que jovens, as frustrações pela falta do resultado esportivo. Elza foi uma das primeiras, talvez o primeiro caso de grande repercussão. Mas será que evoluímos? Quantas vezes você já ouviu que um jogador “se acabou” desde que começou a sair com tal atriz, que ela desviou sua atenção dos gramados? Quantas vezes já ouvimos gente aconselhando jovens aspirantes a craque para que estejam atentos às “aproveitadoras”? É claro que há tantos e tantos exemplos de jogadores criticados pela forma como se entregaram às recompensas da fama, mas não é difícil notar como, nestas narrativas, o papel da mulher é quase sempre o da tentação proibida, da armadilha.O mérito pelos gols, pelos títulos, pelo talento e pelo dom de encantar com a bola no pé cabe unicamente ao homem, exaltado ainda pela boa fama do conquistador. Mas, quando as vitórias cessam, não são raros os casos em que ignoramos toda a complexa soma de fatores humanos que podem influenciar uma carreira. E a mulher é vilanizada.Elza foi muito mais do que a mulher de Garrincha: foi a vitória sobre as privações, sobre a desigualdade, sobre o preconceito, um símbolo de luta pela emancipação feminina e contra o racismo. Foi a Voz do Milênio, uma artista única com uma vida incomparável. Mas, ao recordar sua biografia, o ambiente do futebol tem algo mais importante a recordar do que seu relacionamento com um craque inesquecível: a lição de que o jogo ainda tem muito a evoluir em seu olhar para a mulher.