A lição de Elza

Por Redação em 21/01/2022 às 07:21:24

Preta, pobre, mulher. Elza Soares enfrentou o combo da desigualdade e dos preconceitos brasileiros, dona de um simbolismo e de uma história de vida vigorosos demais para que sua biografia a retrate como “a mulher de Garrincha”. No entanto, numa reflexão que projete a trajetória deste fenômeno da natureza para o ambiente esportivo, é possível dizer que Elza foi o bode expiatório sob medida para que o futebol manifestasse uma das faces mais cruéis e desavergonhadas do machismo nacional. Mais de meio século se passou e o jogo, assim como a sociedade, ainda não se livrou desta chaga.

Elza não foi apenas condenada por uma espécie de tribunal onde, em geral, a mulher não tem direito a defesa. Sua definitiva união com Garrincha aconteceu enquanto todos os dedos estavam apontados em sua direção, afinal o país decretara que fora ela a responsável pelo fim do casamento de um ídolo nacional. O craque, quando conheceu Elza no Chile, durante a Copa do Mundo de 1962, era casado. Não foi Garrincha quem iniciou um relacionamento extraconjugal, foi a cantora quem destruiu uma família.

Elza Soares

Reprodução SporTV

É um tanto estarrecedor, desalentador até, descobrir que mudamos tão pouco em tanto tempo. Elza seria, poucos anos depois, uma das primeiras vítimas de uma narrativa que, até hoje, cruza insistentemente o nosso caminho. No caso de Garrincha, foi o álcool, no caso de tantos outros jogadores, os prazeres da noite, as portas que a idolatria escancara, a mudança repentina de uma vida de privações para um status de herói nacional. Não é fácil administrar. Mais fácil é, de novo, culpar a mulher. E Elza Soares, com a força que talvez só ela sabia de onde vinha, enfrentou um país inteiro que a condenava como responsável pela decadência de um craque bicampeão do mundo. Enquanto, entre quatro paredes, ela era vítima de violência doméstica.

O mesmo país que romantiza, glamouriza e exalta o jogador garanhão, que posa com uma coleção de parceiras exibidas como troféus, por vezes ainda tropeça na tentação de despejar nelas, e não nas escolhas de homens adultos, ainda que jovens, as frustrações pela falta do resultado esportivo. Elza foi uma das primeiras, talvez o primeiro caso de grande repercussão. Mas será que evoluímos? Quantas vezes você já ouviu que um jogador “se acabou” desde que começou a sair com tal atriz, que ela desviou sua atenção dos gramados? Quantas vezes já ouvimos gente aconselhando jovens aspirantes a craque para que estejam atentos às “aproveitadoras”? É claro que há tantos e tantos exemplos de jogadores criticados pela forma como se entregaram às recompensas da fama, mas não é difícil notar como, nestas narrativas, o papel da mulher é quase sempre o da tentação proibida, da armadilha.

O mérito pelos gols, pelos títulos, pelo talento e pelo dom de encantar com a bola no pé cabe unicamente ao homem, exaltado ainda pela boa fama do conquistador. Mas, quando as vitórias cessam, não são raros os casos em que ignoramos toda a complexa soma de fatores humanos que podem influenciar uma carreira. E a mulher é vilanizada.

Elza foi muito mais do que a mulher de Garrincha: foi a vitória sobre as privações, sobre a desigualdade, sobre o preconceito, um símbolo de luta pela emancipação feminina e contra o racismo. Foi a Voz do Milênio, uma artista única com uma vida incomparável. Mas, ao recordar sua biografia, o ambiente do futebol tem algo mais importante a recordar do que seu relacionamento com um craque inesquecível: a lição de que o jogo ainda tem muito a evoluir em seu olhar para a mulher.

Fonte: Globo Esporte/G1

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