Opinião: uma carta para quem relativiza um preconceito sustentado pela ignorância

Por Redação em 20/11/2021 às 06:12:31

Compreender o preconceito racial e suas consequências é necessário e um dos caminhos para tentarmos erradicá-lo As correntes que prendiam os escravizados no Brasil foram quebradas por lei, e depois de muita luta, em 1888. Mas as amarras invisíveis do preconceito seguem entrelaçadas nos corpos negros com um nó ainda mais forte, mas que muitas vezes não é notado. Em alguns casos, para aqueles que não sentem as dores causadas por ele, a sua existência é negada.

Responsável por tornar tais amarras concretas, o racismo foi concebido como um instrumento de exploração do trabalho e, com a transformação em mercadoria do valor humano, tornou-se moda livrar-se da culpa de prejudicar outros seres humanos desprezando-os e desvalorizando-os. Quase 150 anos depois da oficialização de uma segregação batizada de abolição, tal preconceito foi adaptado e fomentado por uma estrutura social viciada na construção e manutenção de uma zona de conforto do homem branco.

Vivemos tempos difíceis. Polarizados e divididos. Tempos em que a luta contra um preconceito sustentado pela ignorância é relativizada por quem deveria liderar ações afirmativas em busca de um país e uma sociedade cada vez mais igual, mostrando que o racismo é um sinal da nossa incapacidade de amar o bastante. Seja o próximo, os nossos e os desconhecidos.

Presidente Global da Central Única das Favelas, Preto Zezé diz que nós temos no Brasil a versão “sofisticada” do racismo: aquele que todo mundo concorda que existe, mas ninguém faz.

O “racismo sofisticado” é tão cruel que coloca o oprimido contra a parede sempre. Seja com falta de oportunidade, na miséria, no cerceamento da educação, do saneamento básico, da moradia e da dignidade. No sucesso, quando se tem vergonha da própria vitória, ou mesmo se culpa pelas conquistas individuais, como a compra de uma casa, de um carro ou mesmo a possibilidade de dar uma educação melhor para os nossos filhos. Vencer parece proibido, inclusive entre os nossos.

E essa crueldade vai além e age, inclusive, quando não é explícita.

Marinho em Santos x Chapecoense

Ivan Storti/SantosFC

Por exemplo: o erro individual de um negro é sempre levado para o coletivo. Se um goleiro negro falha ou um político negro não corresponde às expectativas criadas por seus eleitores, não existe a segunda chance. Pior, quantas vezes o “tinha que ser preto” você já não ouviu? O fracasso é generalizado, sempre! Enquanto a conquista individual dentro da estrutura preconceituosa é vista como mérito isolado, mesmo que tal construção tenha passado por um crivo de sofrimento, perdas e sacrifício. “Basta se esforçar que todo mundo consegue, inclusive você”.

Já quando surgem opiniões isoladas de negros que, influenciados pela estrutura preconceituosa, são a favor de ações racistas, a verdade absoluta impera: “Não existe racismo no Brasil!”; “Tá vendo? Ele nem se incomoda em ser chamado de preto!". E por aí vai. A atual Fundação Palmares está aí para não me fazer mentir.

Nossas atitudes coletivas em relação ao racismo têm profundas consequências sociais e políticas. Individualmente, nossas convicções colocam-nos em um inescapável círculo de atitudes morais de outras pessoas e nossas próprias.

O preconceito é uma ideia errada sustentada pela ignorância. O racismo não precisa de ação para acontecer, ele é automático. Por isso, precisamos, urgentemente, naturalizar a conversa sobre o racismo no Brasil. Compreender o preconceito racial e suas consequências é necessário e um dos caminhos para tentarmos erradicá-lo.

No Dia da Consciência Negra, os corpos atingidos pela letalidade do racismo vêm do futebol: o meia Celsinho, jogador do Londrina e um corpo cheio de cicatrizes causadas por inúmeras injúrias, e a atacante Adriana, capitã do Corinthians, que teve o dissabor racista pela primeira vez.

Dois casos distintos, mas atingidos pela mesma omissão conivente.

A devolução dos pontos para o Brusque no recurso do pleno do STJD, formado por nove homens brancos que jamais sentirão a dor do racismo, e o silêncio da Conmebol escancaram a omissão institucional na luta antirracista e também as amarras invisíveis que ainda nos machucam e deixam marcas para a eternidade. Como se não bastasse vestirmos uma pele apontada historicamente pela sociedade como algo que intimida.

É importante ressaltar que, mesmo o racismo sendo crime previsto na Lei 7.716/1989 e o Senado Federal tendo aprovando o projeto que classifica injúria racial como racismo, a conivência das entidades que gerem o futebol e suas vertentes falaram, novamente, mais alto.

O nigeriano-americano Emmanuel Acho, ex-linebacker da NFL, afirma no livro “Conversas desconfortáveis com um homem negro” que no racismo “se as pessoas brancas são o problema, elas precisam fazer parte da solução”.

É preciso entender a profundidade da frase escrita por Acho. O racismo não é um assunto só dos negros. Não é uma agenda combatida só por quem sofre as dores causadas por ele. É necessário que pessoas brancas questionem aqueles que se aferram ao discurso da branquitude. Ser empático, informado e corajoso é perceber as coisas erradas de um mundo moderno feito para o conforto de um único grupo de pessoas. É saber e questionar que a importância do “Mês da História Branca” ou “Dia da Consciência Branca” não apenas não é necessário, mas na verdade é um ato de racismo. Não é só focar em privilégio, mas sim furar a bolha de que o mundo foi feito para o branco dar certo.

Voltando às amarras, a escravidão é um evento moderno dentro da história do negro, por isso é importante dar cor aos personagens/pessoas. Celsinhos, Adrianas, Aranhas, Grafites, Malcoms, Floyds, Zumbis. Por eles, com eles e graças a eles, seguimos lutando. E digo mais: se não fossem eles, esse texto não seria sequer cogitado, quiçá publicado.

O racismo é ensinado, assim como o antirracismo. Segundo Paulo Freire, “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor". Ou seja, a educação é o caminho da liberdade e também da mudança pela qual tanto lutamos e com a qual sonhamos para o futuro.

Para aqueles que marcham, resistem, se ajoelham e mantêm a esperança, força!

Para quem relativiza um preconceito sustentado pela ignorância, volte ao começo do texto e leia de novo. Se mesmo assim o racismo seguir relativizado, o grande problema da sua vida não é ele, e sim você!

Fonte: Globo Esporte/G1

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