"Se deixar, pisam em cima de nós": falta de oportunidade marca negritude além das quatro linhas

Por Redação em 19/11/2022 às 07:33:31

Empresário preto na elite do futebol brasileiro, Adalberto Almeida fala sobre pouca representatividade no meio e desafios no mundo da bola: "Meu sucesso pode inspirar" Ainda que os principais ídolos do futebol nacional sejam negros, a presença deles fora de campo beira a raridade. A negritude além das quatro linhas diz muito sobre o que é o Brasil. Um racismo que engloba falta de oportunidades e muita estereotipização, resultante, também, na mínima participação em cargos de maior importância.

Porém, há quem tenha conquistado espaço nesse meio. Adalberto Almeida é um dos únicos empresários pretos na elite do futebol brasileiro. Aos 44 anos, ele representa "pequenos Adalbertos" espalhados pelo Brasil.

– O meu sucesso pode inspirar um futuro profissional preto. De tanto tomar porrada, aprendi a me impor. Comecei a me posicionar há mais ou menos um ano. É lógico, quem é racista e quer te humilhar, vai humilhar porque tem prazer em fazer isso. Isso é estrutural. Agora, cabe a mim me portar bem e colocar a pessoa no lugar dela. Sei entrar e sair de qualquer situação. Se deixar, pisam em cima de nós – disse o empresário.

Por influência do pai santista, Adalberto sempre foi ligado ao futebol. Ainda assim, a inquietude do garoto que não parava de correr no Campo Limpo, bairro da zona sul de São Paulo, já dava indícios de sua primeira atividade no esporte: o atletismo, onde fez carreira competindo por mais de doze anos, até 2004.

Também foi na zona sul da capital paulista sua outra experiência até então desconhecida. Adalberto sentiu na pele logo cedo a dor do racismo.

– Estudei no Instituto de Concórdia, no Campo Limpo. Escola alemã muito rígida, de mórmons, e já sofríamos muito com o racismo. Pra variar, era o único preto. Eu e minha irmã, os únicos no colégio. Meu pai conta que aos seis anos de idade, o fato de eu ser diferente e ser zoado no colégio me fez pegar minhas coisas num certo dia, quando voltei da escola, e querer fugir de casa por ser preto. Então, já tenho a consciência desde pequeno que nada seria fácil para nós – afirmou Adalberto.

– Por isso, tento ter conhecimento do passado para entender o presente. O preto construiu tudo que nós temos aí, imperial pelo nosso país. Fui lá trás conhecer Luís Gama, Joaquim Nabuco, o primeiro deputado branco que contribuiu na abolição, junto com André Rebouças. Pós-abolição em 1988, tínhamos 70% da população preta. A partir de 1924, um forte fluxo de imigrantes passou a vir pro Brasil. Quiseram embranquecer a população. Fui estudar tudo isso, porque conhecimento é tudo. Sem ele, é fácil ser enrolado – concluiu.

A partir de 2004, Adalberto passou a integrar a área de marketing da Adidas, então patrocinadora. Formou-se em administração e fez sucesso na empresa. Em 2013, o ex-meio-campista de Santos e Palmeiras Marcos Assunção o convidou para administrar a carreira. Foi o primeiro trabalho como empresário no futebol, que já contou com o lateral Léo, ex-Santos, e hoje carrega uma lista de jogadores, incluindo Diego Pituca, também ex-Santos e atual Kashima Antlers, do Japão.

A experiência no ramo trouxe a Adalberto uma certeza. Antes de títulos, conquistas e tempo de carreira, a cor da pele é sempre o cartão de visitas.

– Posso contar uma história do Assunção. Ele parou de jogar em 2015, se preparou durante três anos fazendo neurolinguística, universidade de futebol, curso da CBF? Tudo. E nunca teve oportunidade para trabalhar como gestor ou gerente de futebol, que é o sonho dele. É o Marcos Assunção, irmão. Jogou na seleção brasileira, contribuiu muito para que Roma e Betis ganhassem títulos inéditos. Fez o que fez, estudou para caramba e não tem espaço – disse.

Costuma-se olhar o racismo da torcida para os jogadores, mas o universo do futebol endossa uma estrutura ainda pior, mais densa. Dos 20 técnicos que terminaram a Série A de 2022, apenas um era negro: o interino Orlando Ribeiro, no Santos, que já deixou o cargo. O novo técnico é branco.

Da mesma forma que dirigentes e diretores também estão longe de ser maioria. De acordo com o levantamento do portal Superesportes em 2019, à época, apenas três de 100 dirigentes e treinadores da primeira divisão eram negros.

É possível encontrá-los enquanto atletas, ou em profissões que pagam menos, como roupeiros, massagistas e seguranças. Não deixam de ser dignas, claro, e devem ser tão respeitadas quanto as outras. Mas a diferença salarial exemplifica o quão racista se tornou a estrutura futebolística.

Ciente da representatividade no meio, Adalberto reuniu-se com outros três colaboradores e fundou o Mover, movimento para atrair profissionais negros com intuito de que ocupem cada vez mais funções variadas no futebol. O projeto oferece estudo a eles, preparando, hoje, 67 profissionais pretos para o mercado.

A meta é conquistar, também, uma vaga de cada curso dentro da CBF Academy para profissionais do projeto, como cursos de treinador e gestor. Para Adalberto, faz parte de um processo para desconstruir a estrutura de baixíssima repressão ao racismo.

– Eu não posso julgar uma pessoa se não sei o que ela passou. Profissionais da lei, quando julgam, não entendem o que é racismo. Eles nunca sofreram, são todos brancos. E a partir de movimentos assim, é possível ter punições mais severas. O Observatório Racial do Futebol faz um trabalho espetacular há anos. Eles relatam todos os casos de racismo, e nós vamos relatar todos os profissionais pretos que tenham condição de apresentar pros clubes. É um braço do Observatório, mesmo que sejam coisas distintas – afirmou Adalberto.

– Escuto muitos dirigentes falando que não se tem pretos competentes para exercer tais cargos. Então, o Mover veio para mostrar que tem, sim. Eles só não têm oportunidade. É o que estamos fazendo, dando oportunidade para quem se interessa e, principalmente, para quem ainda não teve essa chance – concluiu.

Stand do Mover durante a Brasil Futebol Expo. Da esquerda à direita, os palestrantes Cleiton Carvalho, Adalberto Almeida, Marcelo Carvalho, Edmilson de Jesus e Euler Victor

Adalberto também joga luz à pouca atenção midiática à minoria que conseguiu conquistar espaço nos bastidores do futebol.

– Recentemente, foi divulgado o valuation das dez empresas que mais valem no mercado brasileiro. O Ulisses Jorge está em quinto ou sexto, com 73 milhões de euros. O cara é empresário do Militão. É um empresário preto. Ele está no top 10 do país, irmão. Fazendo 73 milhões de euros. E ninguém fala dele. Todo mundo fala do Bertolucci, da Energy, falam de outros caras. Mas não falam dele – finalizou.

O empresário critica a sociedade pela obsessão na negritude, que visa usufruir de direitos garantidos à comunidade preta – e conquistados pelos mesmos. Em contraponto, não querem passar pelo o que ele e tantos outros vivem.

– Todo mundo quer ser preto. Olha as últimas eleições, quantos candidatos não alegaram ser pretos ou pardos, sendo que a grande maioria era branca. Olha quantos não usufruem de cota racial mesmo não sendo preto. Muitos deles querem ser, mas não querem passar pelo o que passamos. Tem que viver o que nós vivemos.

– Eu, Adalberto, decidi não andar com carro importado. Porque se eu ando com carro importado, eu tomo enquadro toda hora. Entendeu? "Qualé que é, negão? De onde você tirou dinheiro pra comprar esse carro? O que você faz da vida?". Agora, se eu estou num carro comum, os caras não estão nem aí, irmão. "É mais um". Para trabalhar, ando de carro alugado. Carro importado é só com a minha família, pra dar conforto pra eles, porque sozinho eu tomo enquadro toda hora.

Racismo presente desde os primeiros dias na escola, no trabalho e na vida. Adalberto vive num meio com poucos que se assemelham a si, mas segue sem perder a consciência de tudo que a própria raça foi e é submetida.

A depender de pessoas como ele, a negritude além das quatro linhas tem tudo para ser ressignificada. Enquanto isso, o descaso e as poucas chances servem como querosene para esse avião que decola, e que leva junto consigo aqueles que não tiveram oportunidade. Sozinho não se conquista nada, principalmente quando o assunto é luta racial.

Fonte: Globo Esporte/G1

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